domingo, 3 de fevereiro de 2008

Discurso

Tirou os óculos. Passou água no rosto, secou-se. Olhou-se no espelho. Ali, naquele camarim ele estava com seus pensamentos. As coisas estavam acontecendo cada vez mais rápido, mas não havia mais como fugir... nõa podia mais ignorar. Ao fundo, ouvia a voz que lhe apresentava, com todos aqueles elogios e frases de efeito. Tudo aquilo que ele não mais queria ouvir. Ouviu seu nome ser chamado. Respirou fundo, caminhando em direção ao palco. Seus pensamentos consigo. O primeiro passo dentro do palco e todos aqueles aplausos, que pareciam estar abafados... olhou as luzes, olhou os fotógrafos... chegou ao microfone. Pausa. Silêncio de todos esperando a primeira palavra... Olhou a platéia, olhou seu discurso, exalou o ar....

- Senhoras e senhores....

Nova pausa. Ele poderia muito bem seguir com aquilo que todos queriam ouvir... poderia muito bem seguir como se aquilo fosse real... mas não... era a hora de sair daquele estado, era hora de remar contra a maré. Era hora de libertar-se.

- ... estamos dormindo. Sim, estamos dormindo. Nos últimos 200 anos temos causado danos irreversíveis a este planeta. Levamos a extinção inúmeras espécies de animais e criamos toneladas e mais toneladas de lixo. Mas estamos dormindo. Estamos fascinados com este modo de vida. Estamos fascinados e queremos vivê-lo. Muito é falado sobre o meio-ambiente, visto que agora está na moda ser verde, mas o que é realmente falado? Evite o uso de papeis, use menos o seu carro, evite as sacolas plásticas, plante árvores.... sim, esses pequenos gestos realmente ajudam o ambiente... mas não mudam o modo de vida ao qual estamos fascinados. Não mudam o real problema... nosso modo de vida. E a mídia nos fascina ainda mais... com reportagens sobre o futuro verde, as tecnologias miraculosas... Mas essas tecnologias vem apenas para manter tudo como está... e nos iludir com um mundo melhor, que até, por um tempo, parecerá melhor... mas não teremos resolvido a raiz de nossos problemas... o nosso modo de vida.

- As cadeias produtivas hoje são complexas... há uma grande interconexão entre nosso dia-dia e o andamento do planeta. Conflitos étnicos, guerras, violência que não para de crescer... tudo isso não é por acaso, é apenas o resultado de nosso sono, de nossa parilisia diante dos fatos, de nossa preguiça em buscar a verdade... nossa preguiça que aceita tudo que nos é passado sem questionamento. Queremos ficar quietinhos, vivendo nossa fascinação e deixar os problemas para os outros.... construímos muros, nos isolamos para que ninguém pertube nossa fascinação. E o tempo passa... e mundo fica cada vez pior... mas saímos do trabalho, chegamos em casa, ligamos a tv... olhamos o notíciário como se fosse algo distante... até ficamos chocados com alguma coisa, mas logo esquecemos... pois mergulhamos no mundo do entretenimento e nos fascinamos com esse mundo mágico... e queremos ficar por lá... Tudo bem, tudo bem... podem aumentar os impostos, mas me deixe com meus canais de tv. Tudo bem, podem roubar bilhões, eu não ligo, desde que eu tenha meus canais. Tudo bem, podem sucatear toda as necessidades básicas do cidadão... mas me deixe com minha tv.


- E destrõem todos os avanços conseguidos por pesosas como nós ao longo dos últimos 200 anos... mas nós não ligamos... Por que eles nos fascinam com teorias que dizem que tudo sempre está caminhando para o melhor... que tudo nesse planeta, desde a nascente do nilo até o oceano pacífico deve ser privatizado, deve entrar na lei do mercado... porque a lei do mercado é a melhor... será mesmo? Não é o que parece quando olhamos atentamente o quadro em que o planeta se encontra. E vamos criando um abismo para o qual fatalmente vamos cair... Precisamos acordar, precisamos buscar a verdade, deixar o modo passivo para trás. O mundo é aqui e agora e ele precisa de nós, acordados, para reverter esse quadro. Ele precisa de nós, acordados, para que possamos frear os intereses de uma minoria manipuladora, que sabe muito bem o que está fazendo, embalando nosso sono para nos tirar tudo... Que possamos viver despertos. Que possamos criar um mundo melhor... sem utopias, sem sonhos mirabolantes, mas sim no dia-dia, nas relações humanas, no trabalho... em atos. Precisamos agir! E quando despertos agirmos, teremos a força e a união necessária para a mudança. Acordemos! Acordemos!

Saiu dali sem prestar muita atenção aos aplausos mornos que seguiam. Ele sabia que ativismo não cria milagres, que aquela platéia provavelmente amanhã já esqueceria do que ele disse, mas ele sabia que tinha que seguir. Anos virão pela frente onde sua persistência e dedicação serão provados... mas ele está disposto a seguir, encarar os problemas. Ele não quer mais domir. Não importa o que aconteça.

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